Informação: Observatório da Imprensa - 12/04/2011
Por Liliane Machado
A legislação que rege as rádios comunitárias no Brasil carece de reformas urgentes, segundo dados contidos em documento da ONU divulgado recentemente. Para amenizar falhas relativas ao financiamento e desempenho dessas emissoras, o documento traz sugestões polêmicas, que certamente irão provocar debates acirrados. Uma delas diz respeito à recomendação de que o Brasil, a exemplo de países como África do Sul, França, Reino Unido e Canadá, permita a veiculação de publicidade nessas emissoras, o que atualmente é proibido por lei. Quais são as implicações éticas e econômicas de tal possibilidade?
É preciso, em primeiro lugar, observar que o documento é uma tentativa da ONU de contribuir com as possíveis mudanças na legislação de comunicação do país que, na verdade, ainda caminham a passos lentos no parlamento.
O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, tem se empenhado em divulgar o anteprojeto de criação de um novo marco regulatório da mídia, formulado pelo ministro Franklin Martins quando chefiava a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), durante o governo Lula. Em entrevista concedida ao Observatório da Imprensa no dia 22 de março, na TV Brasil, o ministro comentou alguns pontos do documento da ONU, mas não se deteve nas recomendações concernentes às rádios comunitárias.
Filha bastarda e pobre diante de irmãs glamourosas, como a TV digital e a internet, a rádio comunitária tem sido foco de atenção, principalmente de ONGs e associações que defendem a sua importância para as comunidades em que estão sediadas. No mais, há um silêncio por parte de especialistas em estudos midiáticos, raramente quebrado em artigos produzidos parcamente nas academias. É oportuno discutir a recomendação da ONU, já que poderia ser a solução parcial para as dificuldades financeiras enfrentadas pelos produtores desses veículos.
Legislação em outras democracias do mundo
A primeira grande dúvida que surge em relação à permissão para as rádios comunitárias veicularem publicidade é se tal iniciativa não seria uma frontal contradição com os princípios que regem essas mídias. A saber: veículo especial de comunicação, sem fins lucrativos, formada por uma pequena estação que funciona como canal de comunicação, dedicado ao sítio onde está localizado, abrindo oportunidades para divulgação de suas ideias, manifestações culturais, eventos locais, educação, entre outros princípios, que lhe imprimem uma identidade voltada para a promoção da cidadania.
A outra dúvida é o que a publicidade poderia trazer de benefício para tais emissoras que, segundo a lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que instituiu o serviço de radiodifusão comunitária no país, devem abster-se de procurar obter lucros e outras benesses de que os meios de comunicação tradicionais usufruem. A resposta, sem dúvidas, será contrária à iniciativa, caso se adote a postura apocalíptica de que a publicidade é a origem de todos os males do jornalismo praticado no Brasil contemporâneo.
Antes de tentarmos responder a tais perguntas, é importante voltarmos ao texto produzido pela ONU. Realizado por especialistas estrangeiros, abrange vários pontos relativos à produção e difusão das telecomunicações, por meio de uma estratégia laboriosa: descrição e posterior análise da legislação em comunicação de outras democracias do mundo, que apresentam proximidades políticas e econômicas com as nossas. Portanto, não se trata de uma interferência descabida e descontextualizada. O que se pretendeu foi munir os especialistas brasileiros com exemplos de experiências que estão em prática em realidades díspares, mas não totalmente desconectadas da que o Brasil vivencia.
Engajamento e responsabilidade social
Nos países utilizados como comparação – França, Canadá, Reino Unido e África do Sul –, os objetivos das rádios comunitárias são muito próximos aos que estão contidos na lei 9.612: promover a cidadania de uma comunidade específica, por meio de uma comunicação direta, cujo conteúdo se atenha, prioritariamente, aos interesses das pessoas que a habitam. O diferencial é que naqueles países a publicidade não é encarada como um entrave para tais propósitos; ao contrário, ela é tida como uma aliada, já que propicia um serviço de qualidade, senão totalmente realizado por profissionais, no mínimo coordenado por quem se habilitou para tal. Não é porque está mais antenado com as questões sócio/culturais/educativas que o serviço deva ser realizado de forma amadora. Os voluntários são bem-vindos, a participação da comunidade é essencial, mas sem comprometer a qualidade.
O Estado responsabiliza-se por parte dos financiamentos, mas não banca sozinho as despesas com o pagamento dos profissionais e dos demais custos que envolvem a manutenção de uma rádio comunitária. Dessa premissa surge outra questão: qual seria o interesse dessa iniciativa para os profissionais de comunicação no Brasil? haveria algum ganho real para a formação ética e, consequentemente, para a solidificação da preocupação social que eles devem assumir ao ingressar na profissão?
É sabido que parte da formação dos profissionais de comunicação social no país acontece nos estágios supervisionados, paralelo à experiência vivenciada em sala de aula. Agências de publicidade e veículos da imprensa beneficiam-se da mão-de-obra dos estagiários e vice-versa, em uma relação nem sempre harmoniosa e correta – visto que os estagiários, em muitos casos, são utilizados como mão-de-obra barata e descartável. O fato é que, muito cedo, os estudantes são confrontados com uma realidade dura, em que prevalece a ode à concorrência e ao lucro, interferindo de forma real na sua formação e desempenho posterior. Será que abraçar causas sociais, preocupar-se com a parcela educativa da comunicação e ser confrontado com a responsabilidade social não seria algo benéfico para nossos futuros comunicadores? Não seria uma oportunidade de incentivo ao engajamento, palavra meio fora de uso, mas nunca tão necessária quanto nos tempos atuais?
Uma política de financiamento estatal
No caso específico da publicidade, que órgão regeria a relação entre as rádios comunitárias, as agências e os anunciantes? Creio que a resposta está dada e concentra-se em órgãos como o Conselho Nacional de Autorregulamentação (Conar), cujos princípios norteadores, como o artigo 6º, por exemplo, afirmam que “toda publicidade deve estar em consonância com os objetivos do desenvolvimento econômico, da educação e da cultura nacionais”. O fato é que, de um modo geral, o Conar tenta esclarecer que a profissão do publicitário tem que estar regida pelo princípio ético da responsabilidade social.
Além do Conar, a atividade publicitária no Brasil está regulamentada e garantida pela Constituição Federal, em diversos artigos que tratam direta ou indiretamente de questões relativas ao dia-a-dia deste profissional como, por exemplo, o artigo 5º, que aborda os direitos e garantias fundamentais, relativas, entre outras, à livre expressão da atividade da comunicação. Já a Lei 4.680/65 regulamenta a profissão em suas várias nuances, relativas tanto aos deveres quanto aos direitos do publicitário e dos consumidores que atinge.
Por fim, cabe indagar, que tipo de anúncio seria permitido. Segundo o exemplo dos países estudados pelos especialistas da ONU, a recomendação é que tenham um perfil adequado aos princípios gerais da comunidade em que estão inseridos e que, de modo algum, possam ferir os interesses de seus componentes.
Riscos de uma relação prática pérfida sempre haverá, mas não é isso que justifica a atual proibição de que as rádios comunitárias veiculem anúncios publicitários e que só possam aceitar patrocínios de caráter educativo.
Junto com uma política de financiamento estatal bem formulada e bem distribuída, a publicidade nas rádios comunitárias poderia ser um fator determinante em sua dinamização e fortalecimento. As comunidades que já dispõem desses veículos – ainda em número muito aquém das reais necessidades do país – tendem a ganhar.